Almodovarianas, digo-vos! Para quem pensa que andar de autocarro em certos percursos da cidade e em certas horas de ponta é uma actividade de risco, é ver quem lá anda e não tem mais opção. São verdadeiras incursões sobre a riqueza humana em histórias de vida às vezes tão trágicas e ao mesmo tempo interessantes.
Uma senhora sozinha, com duas próteses nas pernas, de muletas, em modo altifalante:
- Ó Senhor cuidado, não me caia sobre as pernas senão mata-me! Olhe que já são 87 anos, seis meses e quatro dias! (risos no autocarro) São pois!, que a contagem agora já é ao dia. Tenho seis filhos, vinte netos, vinte bisnetos e um trisneto.
Curvada sobre a janela e como quem fala sozinha, continua:
- Oh, ali vai aquele! Cheio de pressa para Barros Lima.. é meu filho. Ele não me viu mas eu vi-o! Vai a casa do filho.
Alguém alimenta a conversa dizendo que se calhar ele viu-a.
- Não viu não. Este não me fala há 17 anos. Nem pelo natal, nem quando fui operada às duas pernas. Mas Deus não dorme, que ele também tem pernas e também já teve que operar as dele. (risos de fundo)
A mesma voz de antes diz E a senhora, foi vê-lo?
- Eu? Cruzes! O filho não vai ver a mãe e a mãe vai ver o filho? Eu não! Olhe dessa cambada toda só um neto é que me acompanhou quando fui operada. E sabe porquê? Porque não tenho dinheiro nem herança para deixar. O meu marido morreu com 55 anos e deixou-me 22 contos, que ele ganhava 44. Batia-me muito, numa ocasião matou-me uma filha na barriga de tantos pontapés que me deu no chão. Eu criei-os a todos. Graças a Deus estou fina, e não sou sozinha, ando com Deus.
(...)
Outra senhora que entra e se junta à conversa:
- Pois olhe eu já tenho 90! E sabe de onde venho? Do calista, fui arranjar os meus pés! Que a gente quer é andar e viver!
(...)
Por esta altura já havia um silêncio importante no autocarro. Alguns jovens estudantes e adultos de idade madura entreolhavam-se calados. A sensação que tenho é que um dia, esta qualidade muito estilo nortenha de gente, acaba-se. Fiquei o resto do dia a pensar naquela conversa, e nas saudades imensas que tenho de praticar a escuta ativa nas minhas conversas em contexto terapêutico. Histórias de Vida: não há nada mais enriquecedor do que perscrutar o comportamento humano no que lhe tocou viver.