Filhos

um Maria de Sousa

Crianças pequenas não são sempre adoráveis. A Maria faz coisas incríveis e enche-nos de orgulho tantas vezes, mas uma grande parte do tempo dela é dedicada a fazer coisas banais com birras à mistura. Nada de génios cá em casa. Acima da centena de avisos e ameaças, farta-se de deixar a porta do frigorifico aberta atrás dos iogurtes com a família do Bluey desenhada. Fica irritada sempre que a contrariamos e atira coisas ao chão (morro de vergonha mas é verdade), especialmente nos controlos anti-ipad. Ainda esta semana usou uma barrinha kinder para fazer um treatment completo à pele, roupa, carro e tudo ao redor: percebi o que estava a fazer pouco antes de entrar no trabalho e quase tive um enfarte. Do nada, lembrou-se de cantar alto no autocarro que todos são uns gordos; juro que não sei onde foi buscar aquilo, só sei que não a consegui calar naqueles berros à capela de acordar um morto.

E é muito difícil esta tarefa de educar. Porque hoje em dia nós pais muitas vezes lutamos sozinhos contra o mundo, e aqui não há tolerância, não vale deixar-se ir com a maré. Porque os miúdos são espertos, testam-nos constantemente e de alguma forma especial também nos educam a nós pais.

O certo é que as pequeninas coisas que ela faz com três anos, nos enchem o coração e nos fazem acreditar que este ser humano pequenino já quase do meu tamanho, está a ser pensado para fazer o bem e o belo. É só nisso que apostamos todas as nossas fichas, em estar atentos. Perceber, valorizar e alimentar sempre o melhor lado dela. Sem garantias nenhumas de futuro. Porque um filho é e será sempre uma carta fechada (escrita à mão).

Auto-regeneração

Acho que todos precisamos muito destes dias lindos deste Outono generoso. Todos precisamos de alguma alegria, de algum amor. De sorrisos de estranhos. De sorrisos ao espelho porque gostamos de nos ver. Todos precisamos desse lado belo da vida.

Ás vezes ficamos sem força, sem ânimo. Mas temos que alimentar o girassol da nossa alma e inclinarmo-nos sempre que possível, para esse lado-Sol da vida. Pode ser um mergulho numa piscina de água aquecida, ou no mar. Pode ser umas unhas bem arranjadas ou uma massagem bem feita. Pode ser o cheiro daquele perfume que nos comunica com os sentidos. Pode ser a canção da chuva ou uma manhã de compras. Pode ser beber um bom vinho ou rir alto com uma amiga.

Ser feliz é obrigatório. Vivemos em contagem decrescente.

Remar contra a maré

Em jeito de protestos contra o apertar do cinto, comprei os primeiros dois presentes de Natal. Um livro para a Maria e outro para uma amiga.

Heranças


Que não nos podem roubar, vender ou trespassar à Patagónia. 
Esta musica fala do povo português e de mais nenhum outro. Triste, mas absolutamente linda.

A minha casa no mundo


a sorte grande de morar no coração do Porto

A cidade está cada vez mais clean. Cada vez menos sombria, mais cosmopolita, menos nossa. Gosto da cara lavada que agora tem, mas não gosto do meio termo que não tiveram interesse em não ultrapassar. Portugal é pequenino demais para uma mudança tão drástica em tão pouco tempo. E os portugueses, os portuenses neste caso, deixaram-se arrastar com a corrente forte demais. Nem as gentes do norte que são conhecidas pela sua bravura, conseguiram enfrentar este saque às nossas vidas. Vidas de quem cá vive desde sempre, de quem tem um trabalho para pagar um tecto e pouco mais. Somos cada vez mais o povo que vai de muletas, o povo dos subsídios e das ajudas. Quando projectaram a cidade para este futuro brilhante, esqueceram-se que o ADN das suas gentes, sempre foi uma das coisas mais bonitas e características da cidade. Estamos a ser enxotados. Todos os dias, de quase todos os lugares. Não temos acesso aos lugares mais bonitos, não temos carteiras para cá morar e desfrutar de alguma cultura mais selecionada. Acho que quem sair agora, não vai conseguir voltar mais. Porque esta cidade já não é nossa, e somos cada vez mais obrigados ao silêncio sob o risco de os nossos protestos serem mal interpretados por quem está ao nosso lado. Os estrangeiros dormem à porta da loja do cidadão e é um retrato que me apavora.
Está tudo errado. A única coisa certa é a beleza incomparável do Porto, que sempre foi bonito mesmo quando era anónimo. O Porto das manhãs de nevoeiro, das varinas em becos e vielas, do casario velho e triste da canção do Rui. O mesmo milhafre de asa ferida é o que agora empreende voos inalcançáveis para muitos. O Porto dos jardins e parques que sempre teve mas que agora ganham prémios que os distinguem a nível mundial.

(...)

Farei tudo o que estiver ao meu alcance para que a minha filha continue a viver aqui. É uma aposta emocional, sei que ela um dia vai amar tanto esta cidade como eu, quero pelo menos garantir-lhe essa oportunidade. É importante para mim que ela cresça num lugar bonito, com história e cultura, cheio de verde, com mar e rio. Mesmo que essa cidade comece a ser cara demais, e eu fique uma mãe mais pobre um bocadinho demais. 

(...)

Porque não sei se conseguirei guardar para ela os entardeceres mágicos vistos da janela da nossa cozinha. Mas há mais janelas na cidade, e alguma há-de ser para nós se esse dia difícil estiver destinado.

(...)

Talvez um dia lá mais à frente tudo isto seja para melhor. Se calhar são só as dores do parir de uma cidade nova. Deus sabe.

O mundo em rota de colisão

Coitadinho do pai

Há assuntos que me revoltam, mais ainda quando o mundo entra numa acefalia em modo frenético de proteção dos mais coitadinhos, não dos mais indefesos.

Óbvio que vivemos tempos estranhos, que as nossas vidas são um atravessar da selva todos os dias, que os empregos nos consomem a inteligência e que basta sermos humanos para as falhas acontecerem. Mas porra, morreu uma criança. Que provavelmente chorou sozinha durante horas até desidratar, até não aguentar mais, até morrer. E não há crime, dizem estes profissionais todos.

Piurça da alma

Pior que ursa mesmo. Dias em que parece que o mundo me está a cair em cima. É a cabeça a mil com o futuro e nem sei se estarei cá para vivê-lo. É a rotina que me atropela: quando me deito às 2h da manhã e levanto às 7h para levar a miúda, entro em rota de colisão. São os autocarros à pinha e eu sempre a pensar no tempo de vida que gasto fechada naqueles locais às vezes inqualificáveis (hoje fui obrigada a circular colada a um casal de indianos que cheirava a bolas de naftalina). É a cidade com mais carros do que pessoas e nós os dois sempre a discutirmos de manhã porque o trânsito nos enlouquece e é só uma boa desculpa para a nossa incompetência que nos leva a ainda não ter decidido que a rotina deve começar às 6h. É o barulho de obras há meses a entrar-nos pela porta de casa adentro. É o prédio sempre sujo e todos os dias caras novas, gente que não diz bom dia nem espera por quem vem a correr, gente que circula no elevador com sacos do lixo com cheiro nauseabundo. É a falta de tempo para algumas pessoas realmente importantes para nós. A falta de férias também, que este ano não tivemos nem vamos ter. De resto ninguém está doente graças a Deus, só eu tenho esta garganta mais inflamada que o inferno. E só eu mesmo acho que não é preciso termos covid para usar máscara. Gripes comuns também se transmitem e é uma pena que a pandemia não nos tenha deixado sequer a consciência de que deveríamos sempre proteger-nos uns aos outros. Bichinhos de memória curta, é o que somos.

Suspiro fundo quatro vezes. Digo duas palavras bem feias que me vão pesar na consciência durante horas. Arrasto-me.

E ainda nem sequer começaram as chuvas!

Sobre um dia bem passado

 









Serralves. Num belíssimo dia de sol num Outono que começou generoso. Basta estarmos os três juntos, para estarmos bem e felizes. Mas há lugares que acrescentam.

Não, não corre sempre mal

Basicamente depois de termos a minha mãe cá em casa um mês e meio, achei que devia focar-me em prioridades. Não deixar acumular  as vidas de casa, dormir o mínimo indispensável e decente, focar-me no trabalho porque não sei os outros mas eu preciso muito do meu. Fora disto não tenho conseguido mais mas a realidade é que começo a aprender que não tenho margem para dispersar energia e esforços. Era algo que me agoniava, não ter tempo para os outros. Mas as nossas vidas estão de tal maneira agressivas que isto de nos focarmos no núcleo duro é quase uma lei de sobrevivência. Eu sei, um dia olhamos e onde estão todos? Foram viver as suas vidinhas, pois claro. Mas não, eu não penso assim. Acredito que quem ama, há-de sempre encontrar e saber o caminho, que pessoas que se querem de verdade não se perdem com a distância ou com os dias acelerados. Criar um filho exige esta disciplina e esta capacidade de destralhar a nossa vida e os nossos dias. Simplificar, é a palavra de ordem. Sem pesares.

Vitórias? Esta semana consegui dormir uma boa sesta. E visitar um museu com a minha filha.

Do que não é pouca coisa

Quase seis meses de um bebé que já gatinha e que ganhou um balão de oxigénio para mais seis meses de vida. De resto dizer-vos que estou feliz no meu novo emprego. A trabalhar muito. Mas feliz.

A verdade dos factos

Esta semana tive que comprar Quitoso para lavar o cabelo da Maria. Como tenho algum desconto na farmácia, paguei 21 euros. E eu pergunto-me, se um simples pequeno frasco de Quitoso custa esta barbaridade, como não há-de um T2 para viver custar uma renda de 1000 euros por mês? A simples água para beber está caríssima. Tomem nota: chegará o dia em que vamos pagar uma taxa pelo ar que respiramos.

As contas da vida deixam de bater certo.

A insana loucura destes tempos

Para qualquer lado que me vire, só ouço falar de mais uma família que ficou sem casa: todos ao monte para casa dos velhos outra vez, porque já ninguém consegue pagar rendas nesta cidade. E comprar casa só para os guiris, que o português comum não consegue. Anyway ninguém está feliz com as contas, nem quem comprou casa e está a pagar ao banco, nem quem tem que pagar o dobro para viver num espaço alugado, mais pequeno, com sorte na mesma cidade onde vive há uma vida inteira. 
E os velhos. Os velhos, que ainda há pouco se ouvia falar deles porque os filhos os abandonavam em lares, hospitais e à sua sorte, são agora os protagonistas, quem diria. São os mesmos velhos que agora recebem nas suas humildes casinhas os filhos mais velhos chegados com pintainhos debaixo da asa, para dormirem todos ao monte outra vez, como nos inícios dos tempos dos nossos pais.

Esta semana ouvia o discurso da Mariana Mortágua, e quanta razão lhe encontrei nas palavras e na revolta. Ainda se lembram de 2008? Do fenómeno do crescendo dos suicídios porque a crise e as dividas asfixiavam as gentes? Acho que estamos à porta de dias piores - muito piores - em pleno 2023.

Aqui no prédio onde moro, já quase não existem famílias. Só estudantes. E o ruído de obras tornou-se uma constante no nosso dia a dia cá em casa. Os senhorios apressam-se a expulsar quem cá vive, porque é o dinheirinho que comanda a vida e os sonhos.

Muito muito triste. E assustador.

Setembro de 2023

3 aninhos e tu já escreves o teu nome: Maria.

Fui eu quem te ensinou a escrever a tua primeira palavra, e os três primeiros números da tua vida. De resto filha a vida vai ser um rol de histórias e pensamentos - e tu gostas de palavras. E de contas de somar e de subtrair.

Que sejas sempre a menina mais feliz.