Intensidade que dói

Os últimos dias foram de suspense. Todo o fumo e fagulhas que andou no ar deixou pressentir bem a tristeza dessas gentes que viram de perto arder as gentes e as terras. Filme de terror, cenário de muita confusão; não sei porquê que estas coisas acontecem cada vez mais, num mundo que se diz tão munido de ferramentas. A vergonha de deixarmos arder assim as nossas matas, de mais uma vez sermos apanhados de calças nas mãos, de culparmos o clima pelas nossas atrocidades. E perceber logo nas primeiras chuvas que o cenário vai mudar mas o filme vai continuar a ser de terror. Dá vontade de fugir de perto destes Homens, destas leis. Momento marcante 1.

Dentro da casa enfumarada, no silêncio do meu quarto, decisões tomadas. Nunca é fácil mudar, eu não gosto. Mas acredito que são as decisões, certas ou erradas, que são a seiva da vida. Preciso de sair do lugar onde estou. Não é a primeira vez que esta sensação forte acontece, nem sequer foi assim há tanto tempo que me aconteceu a ultima vez. Cansa. Desgasta. Não o faço nos picos da alegria. Faço-o agarrada à mesma esperança de sempre: Deus ajuda quem muda. Momento marcante 2.

Horários já difíceis de digerir para uma família com uma criança pequena. Poucas horas de bom sono. A cabeça sempre a girar e o modo sobrevivência a fazer-me disparar para o que tenho mais próximo. A Maria a fazer umas birras que lhe desconhecia, e eu a dar-lhe as primeiras duas sapatadas no rabo das que sacodem a poeira mas que me partiram o coração ao meio. A sociedade leva-nos a isto. A verdade é que estou a criar uma menina que é um sonho, mas com tudo o que lhe permitimos começa a acusar sinais de ser só mais uma mimalha, birrenta e pseudo-manipuladora. Demasiado ipad, demasiadas prendas, excesso de beijos. Não podemos fazer isso dela, com ela. Por todas as razões, mas porque até construir a família dela, a Maria que não tem irmãos, um dia vai estar sozinha no mundo. E tem que ser inteira e integra e bastar-se. Sempre ouvi que é de pequenino que se torce o pepino. As velhas escolas já sabemos no que falharam, as novas suspeitamos que sabem tudo mas ainda é demasiado cedo para prognósticos. E eu cá sinto-me tão às apalpadelas nisto de ser mãe, que hoje estive duas horas deitada na cama, no escuro do meu quarto, aninhada numa tristeza por não saber como fazer. Momento marcante 3.

Perguntei ao Luís quando nos casamos, sem romanticismo nenhum. Estou preocupada com a Maria e com o futuro. Respondeu-me que ia comprar hortelã para a canja de logo à noite e que de momento não estava a pensar em mais nada. Mas que se eu quisesse para ir vendo as alianças. E foi assim que decidi que não volto nunca mais a este assunto. Matou antes o romanticismo e matou agora o planeamento. Somos diferentes, olhamos a vida de formas diferentes. Momento marcante 4.

Ficar saturada das queixas da minha mãe ao telefone. Perceber que ela errou quase tudo e ouvi-la culpar o universo e as pessoas pela falta de sorte desperta em mim o pior sentimento humano: uma espécie de pena à mistura com raiva. Ao ponto de lhe dizer coisas que precisa de ouvir mas que magoam muito. Adivinhar que o fim da vida dela vai ser de uma profunda tristeza. E ter a certeza que quero estar lá para lhe dar a mão, seja eu vida ou espirito. Porque acima de tudo ela é minha mãe e tenho plena consciência de que a ausência dela pode causar o maior buraco na minha alma. Desses que podem fazer ruir a estrutura inteira. Ela, a pessoa mais torta que conheço, é uma pessoa-pilar para mim.
Lembro-me que tinha uns oito anos quando encontrei uma carta da minha mãe, nunca cheguei a saber a quem se destinava. Nela dizia que estava a pensar em suicidar-se, por muitas razões que davam um livro. Dobrei aquele papel e coloquei onde estava. Durante uns dias ficava muito parada a olhar para ela, lembro-me de acordar e pensar "será que é hoje que a minha mãe vai morrer?" Passaram os dias e não aconteceu e com o tempo acabei por deixar de pensar nisso. Ao mesmo tempo - que injusto para uma criança - penso nisso desde os oito anos.
Lembrar-me destas coisas tem-me deixado muito sensível e triste. Momento marcante 5.

E chega. Quando Prometeu roubou o conhecimento aos Deuses para o oferecer aos Homens, de certeza que tinha boas intenções. Mas no meu caso particular, eu que quase nada sei, sofro mais por saber. E sinto que o mundo está em guerra e na insignificância particular de cada um quase ninguém está feliz, sendo rico ou sendo pobre. Está tudo confuso e às avessas: sabemos tanto, e não sabemos nada.

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