A injustiça nos detalhes

Acho que não é novidade para ninguém que o mundo é uma ferida aberta. E que nós seres humanos nos habituamos ao sofrimento alheio com aterradora conformação. Mais uma pateira, a chegar a Hierro, que afundou. Com cinquenta pessoas, entre as quais várias crianças, primeiro enfrentaram o terror da viagem, depois com terra à vista moveram-se todos por ignorância e por alegria para o mesmo lugar do barco, que cedeu. Um mar cheio de corpos, peixes que já vão sendo carnívoros.

Aquela gente tinha esperança. Tinha objectivos. Alegria que move.

(...)

Acabou-se-me completamente a alegria de viver.

Doem-me os dias todos iguais, sem sabor. As sucessivas frustrações com empregos que parecem castigos - e serão. Memórias de um amor, que não chegou nem para casar. Dói-me o não fazer umas férias, numa casa velha aqui ao lado. O não fazer planos de futuro, rigorosamente nada. O não ter objectivos pequenos sequer. Resume-se tudo, há demasiado tempo, em ir trabalhar, aturar, voltar a casa, limpar, não conversar sequer, e começar tudo outro vez. Caí num vazio tão grande que não sei como sair daqui. Bem certo é que quem não é amado não consegue ser feliz. E eu nunca fui amada. Talvez agora seja pela Maria, mas é temporário. 

Gostava de carregar num botão. E desaparecer definitivamente da memória de todos.

Dias terríveis

Mas que vão passar. Tudo faz parte de um plano de Deus e devo confiar.

Por mais que me sinta sozinha - mais uma vez - num momento de duvidas, medos, angustia e fúria. É um processo que porque se repete na minha vida, com as pessoas de fora e com as pessoas de dentro, obriga-me a mudar. A ficar quieta e calada, porque realmente quase tudo vai perdendo a grande importância que teve para mim.

Tenho a Maria. Que um dia bate asas.

Tenho-me a mim.

Tudo muda num segundo

Ontem chegou o resultado da minha biopsia. Está tudo bem, felizmente. A sorte imensa que eu tive e que tantos não têm. É de longe o momento mais importante da minha semana, do meu mês e talvez do meu ano. A Vida está sempre presa por um fio.

Adenda ao post anterior

Salvaguardo que são os avós deste país que sem poder cuidam de tantos netos. E aí caros pais, temos que aceitar a ajuda como ela vem. Quantas vezes tenho que contar até cem e respirar fundo para não ter um surto por causa da novela mexicana dona Maria e seus avós. Mas depois quando vem a calma percebo que eles são os maiores, porque fazem simplesmente o melhor que podem.

E só a estes e a mais ninguém, são permitidos cabelos despenteados, batas cinzentas e engelhadas, e unhas compridas e sujas.

Setembro é um bom mês para limpezas, para começos e recomeços, para tomar decisões, para mudar de pele. De repente a chuva já está aí outra vez, para ficar por seis meses. O frio revigora e as pessoas desfilam botas e casacos porque o inicio das estações é sempre um refresh para os adictos da moda.

 Pergunto-me o que são pessoas bonitas. 

Esta manhã quando levei a Maria ao colégio percebi descuidos evidentes em algumas crianças que chegam ao mesmo tempo que a Maria. Batas cinzentas e engelhadas, cabelos por pentear, unhas grandes e sujas. Eu sei que o mundo não são as minhas quatro paredes, e a vida dos outros não me diz respeito. Mas não consigo deixar de reparar. A base é o principio. E quando isto falha em crianças tão pequenas, confesso que me choca. Porque há gente muito pobre mas com base muito sólida. Pessoas bonitas são as que não criticam a vida alheia, pode ser. Mas pessoas bonitas para mim, são as simples, as de trato elegante, as que mesmo quando não gostam percebem a importância das regras. Pessoas bonitas falam baixinho (tenho que aprender isto), sorriem, gostam de saber, discutem assuntos com tolerância e respeito. Pessoas bonitas sabem que estão neste mundo para fazerem o Bem e para serem felizes. E depois ponham-lhe um Rolex, que também gosto muito e adoraria ter um. Mas bonito mesmo é o que cultivamos cá dentro, o que segue connosco, mesmo numa cama de Hospital. 

Em Setembro que quase termina, ainda vou a tempo de começar arrumações profundas. Criar espaços vazios fora e dentro de mim.

Leveza, conforto e simplicidade. Olé.

Coisas que descubro depois dos quarenta


A riqueza da musica que canta tristezas com melodias alegres; cada vez gosto mais.

Intensidade que dói

Os últimos dias foram de suspense. Todo o fumo e fagulhas que andou no ar deixou pressentir bem a tristeza dessas gentes que viram de perto arder as gentes e as terras. Filme de terror, cenário de muita confusão; não sei porquê que estas coisas acontecem cada vez mais, num mundo que se diz tão munido de ferramentas. A vergonha de deixarmos arder assim as nossas matas, de mais uma vez sermos apanhados de calças nas mãos, de culparmos o clima pelas nossas atrocidades. E perceber logo nas primeiras chuvas que o cenário vai mudar mas o filme vai continuar a ser de terror. Dá vontade de fugir de perto destes Homens, destas leis. Momento marcante 1.

Dentro da casa enfumarada, no silêncio do meu quarto, decisões tomadas. Nunca é fácil mudar, eu não gosto. Mas acredito que são as decisões, certas ou erradas, que são a seiva da vida. Preciso de sair do lugar onde estou. Não é a primeira vez que esta sensação forte acontece, nem sequer foi assim há tanto tempo que me aconteceu a ultima vez. Cansa. Desgasta. Não o faço nos picos da alegria. Faço-o agarrada à mesma esperança de sempre: Deus ajuda quem muda. Momento marcante 2.

Horários já difíceis de digerir para uma família com uma criança pequena. Poucas horas de bom sono. A cabeça sempre a girar e o modo sobrevivência a fazer-me disparar para o que tenho mais próximo. A Maria a fazer umas birras que lhe desconhecia, e eu a dar-lhe as primeiras duas sapatadas no rabo das que sacodem a poeira mas que me partiram o coração ao meio. A sociedade leva-nos a isto. A verdade é que estou a criar uma menina que é um sonho, mas com tudo o que lhe permitimos começa a acusar sinais de ser só mais uma mimalha, birrenta e pseudo-manipuladora. Demasiado ipad, demasiadas prendas, excesso de beijos. Não podemos fazer isso dela, com ela. Por todas as razões, mas porque até construir a família dela, a Maria que não tem irmãos, um dia vai estar sozinha no mundo. E tem que ser inteira e integra e bastar-se. Sempre ouvi que é de pequenino que se torce o pepino. As velhas escolas já sabemos no que falharam, as novas suspeitamos que sabem tudo mas ainda é demasiado cedo para prognósticos. E eu cá sinto-me tão às apalpadelas nisto de ser mãe, que hoje estive duas horas deitada na cama, no escuro do meu quarto, aninhada numa tristeza por não saber como fazer. Momento marcante 3.

Perguntei ao Luís quando nos casamos, sem romanticismo nenhum. Estou preocupada com a Maria e com o futuro. Respondeu-me que ia comprar hortelã para a canja de logo à noite e que de momento não estava a pensar em mais nada. Mas que se eu quisesse para ir vendo as alianças. E foi assim que decidi que não volto nunca mais a este assunto. Matou antes o romanticismo e matou agora o planeamento. Somos diferentes, olhamos a vida de formas diferentes. Momento marcante 4.

Ficar saturada das queixas da minha mãe ao telefone. Perceber que ela errou quase tudo e ouvi-la culpar o universo e as pessoas pela falta de sorte desperta em mim o pior sentimento humano: uma espécie de pena à mistura com raiva. Ao ponto de lhe dizer coisas que precisa de ouvir mas que magoam muito. Adivinhar que o fim da vida dela vai ser de uma profunda tristeza. E ter a certeza que quero estar lá para lhe dar a mão, seja eu vida ou espirito. Porque acima de tudo ela é minha mãe e tenho plena consciência de que a ausência dela pode causar o maior buraco na minha alma. Desses que podem fazer ruir a estrutura inteira. Ela, a pessoa mais torta que conheço, é uma pessoa-pilar para mim.
Lembro-me que tinha uns oito anos quando encontrei uma carta da minha mãe, nunca cheguei a saber a quem se destinava. Nela dizia que estava a pensar em suicidar-se, por muitas razões que davam um livro. Dobrei aquele papel e coloquei onde estava. Durante uns dias ficava muito parada a olhar para ela, lembro-me de acordar e pensar "será que é hoje que a minha mãe vai morrer?" Passaram os dias e não aconteceu e com o tempo acabei por deixar de pensar nisso. Ao mesmo tempo - que injusto para uma criança - penso nisso desde os oito anos.
Lembrar-me destas coisas tem-me deixado muito sensível e triste. Momento marcante 5.

E chega. Quando Prometeu roubou o conhecimento aos Deuses para o oferecer aos Homens, de certeza que tinha boas intenções. Mas no meu caso particular, eu que quase nada sei, sofro mais por saber. E sinto que o mundo está em guerra e na insignificância particular de cada um quase ninguém está feliz, sendo rico ou sendo pobre. Está tudo confuso e às avessas: sabemos tanto, e não sabemos nada.

Dia de choradeira


A verdade é que ando mesmo a precisar disto, de chorar assim sozinha.
Tenho imensas saudades da Ana e da Cristina. Nunca mais tomei um café com a Teresa. Nem conheci ainda o filho da Patrícia e o da Susana, ambos de nome Santiago. Nem visitei mais a Cristina no Hospital. Nem voltei a conversar com a mãe do Nelo. Partilhei momentos únicos e maravilhosos da minha vida com estas pessoas, nunca poderei contar a minha história sem falar nelas. E elas procuram-me, sou eu que não estou.
Ás vezes sinto que a vida me engole. E eu deixo.
Serei eu um projecto falhado em modo de conclusão?

Eu e as curtas


Adoro.

O lado B da Vida

Tenho feito horários doidos, especialmente para uma mãe com uma filha de 4 anos de idade. São três horários diferentes em sete dias, a ter que andar na rua depois da 1h da madrugada e às 5h30 da manhã. Com folgas separadas. Um bocadinho violento. No meio deste vaivém vertiginoso, fiz uma colnoscopia-endoscopia com anestesia na semana passada. Quase de certeza que a biopsia não vai acusar nada, mas nunca sabemos.

Em casa estou hiper-mega intolerante, pudera. Ao mesmo tempo que a miúda está cada vez mais teimosa. De maneiras que o pouco tempo juntas que deveria ser maravilhoso, é gasto em birras de parte a parte. Apesar de tudo a vida não para: a Maria dorme finalmente sozinha. Ontem disse que quer ir à Austrália, e o pai prometeu-lhe que vai aprender surf. Eu penso na minha mãe. Éramos quatro, e nunca pedimos coisas mundanas como pede a Maria. Nós no nosso tempo só queríamos mesmo ter umas sapatilhas para as aulas comuns de ginástica. E já era tão difícil para a minha mãe...

Vida social, zero. Acho que já perdi os amigos todos. Quem nunca procura, acaba por deixar de ser procurado. No entanto quem esteve no meu coração, cá continua. Eu é que se me resvalo no meio desta vida já tão apertada, fico sem tempo até para descansar. Não dá mesmo malta. Acusem-me de má gestão, do que quiserem. Eu cá sei da minha vida.

Durmo bem mas ando cansada, a sentir que tenho que mudar alguma coisa, porque a continuar assim, não sei. No geral estamos bem os três. Núcleo duro intacto. Obrigada meu Deus, porque já não é pouca coisa.

(...)

Para ver

E é sempre quando estás no limite financeiro que te parte um dente ou te dói a barriga. Acho interessante ser assim, a vida ensina, mesmo quando teimamos em não aprender ela não desiste de nós. Outra coisa imensa, que nos faz sentir que não voltaremos a este ponto do caminho, é que ninguém se vai enterrar connosco. Perceber isso permite clareza e reação. De resto é só a vida a ser normal, nascemos e morremos sozinhos. Em grande parte do percurso estamos acompanhados, mas nas dificuldades a sério, conseguimos ouvir o eco do nosso lamento.

As voltas que a vida dá



Não gosto mais de viver nesta casa-cidade nem do que implica a cada ano viver a ameaça de ter que sair. Não gosto mesmo de ficar de braços cruzados à espera que a bomba estoure, nunca foi do meu feitio e agora estou a ser obrigada a fazê-lo. As gentes da cidade não têm dinheiro e o que há de casas vão sendo compradas por quem tem muito, normalmente os estrangeiros. É uma espécie de pobreza colectiva na qual me incomoda já estar a incluir a Maria. Tenho 45 anos e gostava de me reformar já, porque a violência dos empregos, dos horários, dos salários tão baixos, são cada vez mais incompatíveis com as vidas que queremos ter e dar aos nossos filhos. Já nem é nada por mim, faz tempo que desisti de pensar no doutoramento, nem sei o que é gastar dinheiro comigo numa massagem. Depois ao mesmo tempo ela só tem 4 anos, e é mimada e teimosa e desobediente, numa fase em que eu estou intolerante. Quando me saem os berros e ultimatos, o pai sai em defesa dela, para me lembrar de forma subtil que sou péssima mãe, que não é com maus modos que a coisa vai lá. Pois não, mas também não é com deixar passar a procissão e ficar a ver. De maneiras que este sentir-me assim, sem saídas nem para mim quanto mais para ela, só me deixa força anímica para ir ao trabalho e voltar a casa para dormir. Já nem acho a cidade tão bonita, é a história da raposa a olhar para o cacho de uvas maduras mas como não lhes chega diz que estão verdes.
Cada vez tenho mais despesas e cada vez tenho menos dinheiro. Cada vez sei gerir menos o dinheiro e cada vez gosto menos do dinheiro. Por causa disso cada vez me sinto mais sozinha.

Agrilhoada nesta cidade, nesta casa e na minha conta bancária.

Quinto dia de escola

Chegamos do colégio eram as 16h. Aterrou no sofá como um pardalinho. A miúda que já não quer ir dormir cedo e diz que as sestas são para bebés. São 19h06m. A casa continua silenciosa. Tudo a entrar nos eixos.

Insano

Tenho saudades da chuva.

Paradoxos

Quanto mais percebo que tenho que emagrecer, mais vontade tenho de comer.

Elefante branco

Sou só eu a achar que este Governo anda a distribuir o que não tem?

(...)

Dia primeiro

Começamos o dia com chuva e a miúda tristonha porque regressava ao Colégio hoje. E os três ainda sem sentirmos que já estamos super up na engrenagem da roda do hamster, lá fomos com a maré. Detestei a recepção aos miúdos e ela lá ficou a chorar e nós viemos embora de coração apertado. Gostava de fazer aqui um parêntesis: nunca vou gostar de ver uma criança da idade da minha filha, no primeiro dia de regresso à escola - pré-escolar, ok - em dia de chuva, de crocks, saia de tule, manga cavada e umas asas prateadas. Acho que os pais são só insanos quando arrancam assim o ano lectivo. E não me venham dizer que a escola nestas idades não é a sério, porque a Maria aprendeu para caraças no ano passado. Também confesso que espero não voltar a ver esta situação, porque eles são ao mesmo tempo demasiado pequenos para compreenderem o porquê de uns cumprirem com a obrigatoriedade do uso de uniforme e outros não. Queridos pais, alinhamento por favor. Estimado Colégio, acordamos todos os dias demasiado cedo, não andamos a brincar às escolinhas. O ano passado calei-me a algumas coisas que não gostei muito, porque tenho noção que às vezes nós pais damos mais trabalho que os miúdos. Mas este ano decidi que vou estar mais presente. Uma semaninha de tolerância para que todos entrem no ritmo, depois vou manifestar-me sempre que me parecer conveniente.

Em Janeiro a Maria vai cumprir 5 anos, fala nisso como se fosse atingir uma espécie de maior idade. Eu estou muito feliz e contente, já escreve o nome dela, faz contas de somar básicas e tem uma sede de saber que é uma peninha estragarmos com mariquices. É um privilégio ser criança e ela tem que rir e brincar e andar fantasiada. Permitimos-lhe isso tudo; não tive nada do que ela tem. Mas a regra. É a regra e a disciplina que vão fazer a diferença nos seres mimados e consentidos que nós pais estamos a criar. E se o Colégio não me ajudar sequer nisso, socorro.

Não são as crianças. As crianças são todas uns amores, são Crianças. Lembro-me de ter sido muito pobre e de isso se notar logo no meu primeiro dia de aulas. Não quero que a Maria trate nenhuma criança de maneira diferente, nem se sinta ela própria diferente, por causa de umas asas prateadas ou de uma bata. Não é isso, é outra coisa.

Setembro