"Nos tempos em que os animais falavam da minha infância na Vitória, nada se deitava fora. Nada se perdia e tudo se transformava. Nos sapatos punham-se meias solas e “protectores”, para não gastar tacões e biqueiras. Os fatos e sobretudos viravam-se. Colarinhos e punhos das camisas eram mudados. Os buracos das calças remendavam-se, aproveitando o pano de outros sítios (chamava-se pôr fundilhos) e os das peúgas eram cosidos por mãos de fada, até ficarem rendas. As malhas das meias «de vidro» eram apanhadas por «apanhadeiras» instaladas em vãos de portas. E até as gravatas eram viradas. Mudando a geografia: tachos, panelas e jarros levavam «pingos» de solda quando furados e os fundos, quando gastos, eram substituídos. O mesmo sucedia com recipientes de metal, incluindo penicos. No caso da louça, pratos, travessas e tampas partidos, eram reconstruídos usando «gatos» de arame. Para quem os possuía, quando os pneus dos automóveis ficavam carecas, mandavam-se recauchutar. De comidas aproveitava-se tudo. Do jantar para a ceia. De um dia para o outro. Deitar fora (sobretudo pão) era considerado pecado, e deixar no prato absolutamente proibido. Faziam-se prodígios com espinhas e peles de peixe (especialmente bacalhau), ossos e cartilagens dos animais. A geração para quem Vigo era o estrangeiro e a praia no Molhe, as férias possíveis, que, nos tempos da II Guerra e do pós-Guerra limpou o cu a papel de jornal, habituada ao sacrifício, poupança e a usar a imaginação para sobreviver, conhece os contornos da situação para que o país está a ser empurrado. (...)"
Helder Pacheco, in O Regresso das dificuldades, 2013
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