Vontade de voltar para a ilha








Lá faltava-me tudo aqui. O rio, o nevoeiro das manhãs, a cultura, o verde, o povo, a cidade velhinha e cheia de história. Mas os anos passam, e as saudades invertem-se. Tenho saudades do vento, das montanhas nuas, da exuberância exótica das flores, da lava negra, do silêncio, da paz, da liberdade e dos dias que parecem maiores todo o ano, das caminhadas, das acácias.

Nunca temos tudo.

Uma Família

 


É a maior herança. Ter com quem rir, com quem trincar os dias amargos, com quem partilhar os silêncios. Ter para quem voltar, no fim do dia ou no fim de uma viagem longa. Ter com quem apreciar as coisas simples como ficar sentado na beira do rio numa tarde de calor.

Ser de alguém; pertencer a.

Querida filha

Corre o mês de Outubro do ano 2024.

A mãe e o pai fazem contas à vida, o dinheiro não chega para casarmos e qualquer dia seremos expulsos da cidade, sendo que as casas no Porto quer seja para alugar ou comprar estão a preços proibidos.

O meu trabalho começa a fazer-me um cheque-mate mental. O teu pai não fala muito sobre as coisas dele mas sei que também não está fácil, vivemos num país de salários muito baixos e onde cada um tem que trabalhar por dois.

Morreu o cantor Marco Paulo, um dia falo-te nele.

Em Lisboa queimam carros nas ruas. Uma anarquia este país, uma desordem tal que cheira só a mau prenúncio.

A tua avó Betinha descobriu o Facebook.

Tens 4 anos e a tua avó Rosa e o teu avô José deram-te um chiclete. 

Decidi que não vou tomar a vacina nem da gripe nem do COVID.

Sinto-me muito cansada filha, tenho abandonado algumas pessoas no caminho, e vou abandonar mais. Sinto que não tenho capacidade nem braços para tudo, para tantos, para todos. Antes sentia-me culpada, agora já não. A consciência da minha finitude obriga-me a perceber que vou fazer o possível e está tudo bem. Concentro-me em ti e mesmo assim falho. Penso demasiado nas coisas, e devo dizer-te que não serve de muito. Às vezes ando triste, às vezes só me apetece viver. 

És tu a canção dos meus dias. A minha história de amor; o meu berço, o meu colo, a minha casa no mundo.

(...)

Nunca gostei do Halloween

Mas agora tenho uma filha, que gosta de tudo o que é festa. Procuro que as fantasias escolhidas envolvam pouca ou nenhuma maquilhagem e sobretudo evito tudo o que seja assustador. Trazer o terror para as nossas vidas, ainda que seja em modo brincadeira, não faz sentido para mim. E ver crianças tão pequeninas a carregar no corpo simbologias sinistras, faz-me mesmo muita confusão. A Maria já se vestiu de abóbora, de gato preto, e este ano vai ser uma princesa do Halloween. Alusivo mas sempre muito gira, e nada assustadora.

Caveiras, sangues e facalhões, jamais!

Conversas só com Deus


Esta semana emocionei-me a sério. Por causa de umas fotografias de um casamento. Por causa da beleza, da alegria, do amor. Por causa do querer; e da magia.

(...)

Continuo a procrastinar. Continuo a não procurar oportunidades por causa de compromissos com os outros e não comigo mesma. A vida é demasiado curta para eu ser assim.

O monstro despertou

Desde a gravidez que nunca mais fiz crises relacionadas com a minha pseudo anemia falciforme (traço 40% mas de forma rara com mais expressão de crises que casos da doença em si). Confesso que ao fim de quase 5 anos, já nem me lembrava do assunto. Mas no outro dia, quase morri de manhã. Sozinha em casa, sem sequer conseguir chegar ao telefone, sem conseguir gritar por socorro, sem conseguir andar nem sequer rastejar-me. Já foi há uns dias mas ainda me sinto a recuperar. É como uma descarga de energia brutal, uma espécie de reset, de curto circuito. Ando em modo de reiniciar.

De maneiras que me pus a ler sobre o assunto. E entre muitas coisas fiquei a saber que a minha esperança média de vida são 67 anos. A correr bem. Com o ritmo de vida que levo, e com o aflorar de nervos, stress e depressão dos últimos tempos, o prognóstico não me parece favorável.

É uma pena. A minha filha precisa de mim. A correr bem, ela terá 24 anos.

Sabina, o Grande


Dá a sensação que com esta musica prepara-nos o adeus. Ele sabe. Que o grande poder da musica é que imortaliza o Homem.

No bus

Escutei uma conversa de uma vozinha pela idade da minha filha, em castelhano, com a mãe.
Senti uma dor fininha só de pensar que poderia sujeitar a Maria, nesta idade, a uma mudança tão grande como mudar de país. Mudar de rotinas, de amigos, de língua à força. Precisava muito de ter mais perspectiva financeira, mas falta-me a coragem. Foi por ela que vim, e é por ela que não vou.
(...)

Momentos grandes dos últimos dias

 A vida não é cor de rosa

Nos últimos dias, apesar de muito cansada, tenho feito mais coisas. Ouvi podcasts que gosto, gente com conversa que faz sentido para mim. Participei num webinar sobre wellness e pela primeira vez senti que está na altura de começar a sério exercícios de meditação. Tenho conseguido cozinhar alguma vez para os meus dois amores, inscrevi-me em formação que me interessa muito para 2025, comprei presentes atrasados, levei e fui buscar a Maria a um aniversário, tive conversas longas ao telefone com a minha mãe como se fossemos apenas duas boas amigas de longa data, conversei um bocadinho mais com o Luís, também o abracei mais vezes, destralhei a casa. São pequenas coisas. Mas fazem-me sentir que avanço.

E de repente sinto uma energia anímica que me andava a faltar faz tempo. Sei porque tenho muita vontade de fotografar outra vez. Tenho vontade do Natal. Penso em escrever um livro.

Se eu já tivesse sucumbido ao meu desânimo, quanta coisa eu teria perdido.

Sobre viajar

Aos quatro anos

 


A Maria foi visitar o Mercado do Bolhão com os amiguinhos do Colégio. O avô quis saber como foi, se ela gostou. Resposta dela: "Oh avô, se eu já conheço o Mercado do Bolhão desde que era pequenina!"

Estive lá



Na procissão de velas em Fátima, na celebração do milagre do Sol.
No meio do turbilhão dos dias, da falta de descanso, dos sonos trocados, das pilhas de afazeres que ficam para depois, recebi este convite irrecusável da Nossa Senhora. Uma experiência única. Achei sempre que no meio da multidão iria sufocar, mas não. Sentir que somos cada um de nós a Luz do mundo, em dias tão terríveis como estes que vive a Humanidade, dá-nos alguma esperança e força.

Perto dEla sinto-me limpa, sinto-me sempre bem. Não há colo maior.

Do melhor

A ultrapassar

Há muito tempo que lido mal com a falta de amor. Com a falta dos outros. Com a angustia que me causa não se importarem. Com o perceber que se eu não mexer as minhas palhas, ninguém mexerá. Com nunca me sentir aprovada em nada, a sinalizar bem todas as frequentes vezes em que alguém verbaliza reprovações em relação à minha forma de ser e de estar na vida. É como se tivesse um vermelho que pisca e dispara sinal sonoro cada vez que alguma coisa me diminui. E porque não poderia ser de outra forma, só tem poder de o fazer quem permitimos ficar perto, ou ficar junto. Para cumulo sou uma sensível até à medula, sou a que vê um avião passar ao longe e chora, o que torna qualquer incompatibilidade na Torre. Quando era miúda achava que um dia ia conhecer alguém que gostasse apaixonadamente da minha forma de ser, dessa terrível sensibilidade que vista de algum outro prisma poderia ser uma qualidade. Hoje sei que não é assim.

Tenho tentado repetir baixinho cá dentro que isto não é sobre os outros, isto é sobre mim. Os outros são e dão o que podem e o que querem, são natureza alheia. Culpar os outros, esperar dos outros, atrasa e estanca o crescimento que a minha alma pretende desta passagem. Devo conseguir manter-me eu, apesar dos outros.

Ficar bem porque sou casada comigo mesma. Porque conheci poucos psicólogos com vocação como sei que tenho. Porque seja qual for o emprego sei que me dedico totalmente. Porque sou escrupulosa na organização do dia a dia da minha filha. Porque não corro atrás das oportunidades, mas fui educada a não faltar ao trabalho por causa de uma gripe. Porque sou simples e gosto cada vez mais de ser assim. Porque tenho Fé, apesar de quase todos os dias fazer a derradeira pergunta de Cristo quando no desespero se sentiu abandonado. Porque sou pobre mas não sou miserável. Porque não sou alegre, mas não sou infeliz. 

Um dia tudo perde a importância.

Algo que me desassossega


As tempestades com nome de gente, umas atrás das outras, a arrancar as árvores seculares pela raiz, a deixar toda uma cidade num estado caótico de por os nervos em franja. Chuvas torrenciais em hora de ponta, eu com a miúda mais a mochila mais o saco do ballet mais a minha carteira mais o guarda-chuva que em dias assim é só mais um empecilho, mais setecentos kilos de fúria da pior. Não haver um bus, um táxi. O pai dela sem atender o telefone até duas horas depois do fim do turno dele. Contas feitas foi um dos piores dias da minha vida. Durante a noite não preguei olho, pensava em como se mesmo dentro de casa se sente tamanha angustia, imaginemos então quem vive nas ruas. A tristeza de perceber a nossa imensa fragilidade. De sentir a porra da cidade sem estrutura nenhuma para dias assim. Ter que lidar com gente mal educada - porque hoje em dia é o que mais há - ao mesmo tempo que também eu estou a ferver. Porque fica tudo louco: bichos, gente, aparelhos, transportes.
Em quase cinquenta anos de vida, de todos os temporais que vivi, este foi o mais marcante. Se isto avançar tão rápido como dizem, então deve ser mesmo o principio do fim dos dias há muito anunciado.

Isto de ser mãe

Trata-se de um profundo frente a frente comigo mesma. Nunca fui tão ao fundo dos meus próprios preconceitos, dos meus próprios medos. E tenho percebido nas últimas semanas, que se eu quero deixar uma boa pessoa no mundo, tenho que ter particular cuidado em não fazer julgamentos, baseados nos meus preconceitos e medos, na frente dela, da nossa pequena Maria. Porque cada vez que eu faço um comentário sobre o colégio, sobre a educadora, sobre a auxiliar, sobre o porteiro, sobre os amiguinhos, sobre a mãe dos amiguinhos, eu ensino a Maria a ser. Com 4 anos as crianças imitam os adultos. Se não formos construtivos e generosos, eles também não serão.

Educar a Maria tem sido reeducar-me.

Há coisas boas, infinitamente boas. Como por exemplo adormecer com a Maria. Como estes primeiros dias de chuva e névoa, se estamos quentinhos em casa. Como uma parvoíce qualquer que nos surpreende e nos faz rir até doer a barriga. Como uma canja de galinha com hortelã quando nos sentimos doentes. Como um dia em família, só feito de pasmaceira, de calma sossego e silêncio.

Estas têm sido as grandes coisas da minha vida, as simples, que me fazem sentir, que me fazem sentir melhor.

Às vezes é difícil perceber e aceitar que os Invernos nunca serão justos para os sem-abrigo, que tantas crianças nunca saberão o conforto de tanto amor quanto tem a Maria, que a vida real não é um conto de fadas.

Mas voltarmos para casa todos os dias, sãos e salvos, e reunirmos-nos os três nesta nossa bolha sagrada, é uma sorte maior do que grande. Devo não perder isso de vista, especialmente nos dias em que travo batalhas mais profundas com a minha tristeza. Ser mais justa e ser mais grata.

Do nosso mundo

Uma enorme maçã podre nos seus últimos dias:
Mais um barco de migrantes com destino directo à morte, desta vez ao largo de França. Uma criança da idade da minha filha - 4 anos - naquele barco. Dizem as notícias que morreu espezinhada.
(...)

O paradoxo da injustiça

Olhar para fotografias minhas e perceber que fisicamente estou cada vez mais parecida com o meu pai. O senhor que nunca se preocupou, que é pai da mulher que se preocupa excessivamente por tudo e por nada.