Genial

"É só na escuridão que se percebe os vagalumes."

"Sair da ilha é a pior maneira de ficar nela."                                                                                                                                      Daniel de Sá, in Transeatlântico

Tenho tantas saudades. Tantas que às vezes dói do jeito de moideira fininha que não mata mas martela. Eu que nasci em África e vivi quase toda a minha vida em Portugal, fiquei para sempre refém de Fuerteventura pelo coração. É com o passar do tempo, com o esclarecimento que traz a vida e a idade, que pesa em mim uma saudade grande de ter como janelas as montanhas. De viver com o vento. De ser do mar de manhã à noite, o ano inteiro. De conhecer de cor todas as tonalidades do sol ao longo do dia. Da terra quente e preta, do coração do vulcão a pulsar nas mil formas tomadas pela lava. Do próprio povo que não precisa de mais. De beber sem fim de dias calmos, de horizontes sem mais nada, só feitos de linha do horizonte mesmo. Das cabras a parecer perdidas na paisagem. Das tuneiras, das acácias. (...)

Sobre quando as mudanças são para melhor

 Acredito que é por aqui o caminho

Um dia a valer por muitos

 


Pegamos na miúda e rumamos à costa. Tivemos neste Abril um inesquecível e maravilhoso dia de praia. Trouxemos um pote enorme de conchas para casa, pelo poder que a memória de um dia assim trará ao nosso pequeno santuário. E adormecemos a pedir a Deus mais dias como este: os três juntos, felizes e em paz, num dia de sol e mar que pode ser bem perto de casa. Dia pleno de Luz e sossego.

O eclipse trouxe a Primavera

Acredito mesmo que trouxe além do mar de fundo revolto que já vai ceifando vidas, mudanças em nós tão profundas e fortes como a força das marés. O certo é que no dia seguinte puff! Tivemos finalmente Sol! E a minha alminha que andava sedenta de luz, percebeu pela milionésima vez que o grande milagre de todos os dias, está na força e constância ou inconstância da Natureza. É imenso o que nos oferece numa mensagem implacável de esperança e recomeço, é tremendo o poder de cura, é realmente grandioso o poder do belo com que gratuitamente nos contempla. 

Mas sobre as mudanças interiores em cada um, as bestas às vezes só ficam mais bestas. Prova disso foi o que presenciei esta semana num autocarro. Uma senhora seguramente com mais de 75 anos, que olhava com uma insistência como se nos conhecesse de algum lado, na direção onde estava eu sentada, ao meu lado um rapaz negro como do Senegal e na nossa frente uma senhora cigana de meia idade. Quando a senhora cigana saiu, diz a senhora idosa à amiga, em tom alto e sempre a olhar para mim: "Estou farta, farta, farta! De brasileiros, de pretos e de ciganos! Era mandar tudo daqui para fora que cá só estorvam!" Cautelosamente, só fez o comentário depois da senhora cigana sair, e devia estar perturbada comigo só de pensar que o meu caso seria um dois em um: preta e brasileira! Não consegui dizer nada a esta clara votante do Chega. Ia a comentar com a amiga que o filho que vive do Rendimento Mínimo lhe quer chegar fogo à casa. E eu para os meus adentros, cometi o pecado de pensar: "Cada um tem aquilo que merece. Tenho 45 anos e nunca vivi de qualquer subsidio. Bem haja a minha cor, os meus princípios e a minha educação." E por favor não me venham dizer que em Portugal não há racismo nem ignorância. Um autocarro inteiro ouviu aquilo, e ninguém foi sequer capaz de se pronunciar.

Mas ainda sobre o eclipse, porque temos que culpar alguém, avariou a máquina de café cá em casa, e no extremo da má vibração estalou mais uma guerra no mundo. Acho que é cada vez mais urgente fazermos as coisas bem, sermos pessoas de bem. Cá em casa surgiu uma praga de formigas, coisa nunca vista entre as minhas quatro paredes. Este ano elas estão particularmente activas, mais trabalhadoras do que nunca, a começar mais cedo ainda e teimosas no caminho que nem mulas! Deve ser sinal de alguma coisa. Digo eu.

A outra eu

Quando ainda entro nas lojas e vou direita à coleção de roupa para pequeninos. Quando pego nela ao colo e finjo que ainda me cabe no abraço. Quando a infantilizo e a sento na sanita como se ela ainda usasse o pote. Quando lhe olho para o tamanho e verbalizo que está a crescer depressa demais. Quando eu ainda gosto dos desenhos animados que via com dois anos mas que ela aos quatro já não gosta mais. Quando ainda acho que a posso convencer que iced tea e limão são impróprios para crianças. Quando preparo um cerelac e acabo eu a comê-lo porque ela lembra-se que é comida para bebés. Quando a médica me diz que ela está com uma pneumonia e mesmo no momento em que lhe estou a dar a penicilina bem no fundo do meu coração eu acho que não, que é só uma tosse feinha e uma médica tótó. Quando lhe sinto - e juro que sinto - o mesmo cheiro a bebé de há três anos atrás. Quando ela quer dormir sozinha e sou eu que quero dormir com ela.

Crescer com os filhos nem sempre é linear.



"O único bem que me resta do mundo, é ter chorado algumas vezes".
Alfred de Musset

Sobre o que nos salva

Esses pequenos nadas de todos os dias. Uma mensagem, uma imagem. Uma criança a cantar uma canção nova. Um abraço. Um raio de sol no céu cinzento. A preguiça de um gato a lamber-se ao sol. Um bom dia. Um bom café da manhã. A generosidade, a simplicidade. A bondade. A canção da chuva na janela. Os dias grandes de Verão. Lágrimas. Oração e silêncio. Cheiros que lembram dias felizes e pessoas bonitas. O mar. O amor.

(...)

E dizem os gurus

Que são tempos estranhos, que vão acontecer muitas coisas, que vamos andar todos à toa, que o eclipse nos vai deixar às escuras, que vamos crescer puxados pelas orelhas. 

Eu gostava muito, mesmo muito, de pelo menos não voltar ao fundo onde andei na semana passada.

Semana em que tudo parece grande demais para mim

O temporal que anda nas ruas, anda cá dentro de mim também. Quero estar sozinha e quieta, não quero nada nem ninguém. Estou exausta e farta de sentir que não tenho qualquer valor. Semana de merda, com oito dias de trabalho que me estão a custar horrores, com a miúda cheia de febre e eu nem sequer posso cuidar da minha filha. Eu nem sequer posso dormir ou descansar direito. Ando pela rua noite adentro com chuvadas impiedosas e um frio de morrer. Uma tristeza que já nem dói. Tudo parece dar errado, até mesmo a minha maternidade. E eu nem sequer encontro o mínimo de compreensão ou colaboração mais activa. Deve ser mais ou menos o que sentem os burros ou as mulas de carga, que não servem para mais nada na vida.

Não sou das que fingem que está tudo bem. Está tudo mal, está tudo péssimo.