Por fim uma manhã de Sol


Com três grandes novidades na minha vida, que eu ainda nem sei se são boas ou más, poderia estar atordoada. Mas não, nunca me senti tão serena.
Agarro-me ao meu Luís quando me tremem as pernas, às vezes ele nem percebe. E rio-me com a minha filha, até nos doer a barriga.
Respiro fundo, e não sei mesmo nem de onde me vem esta calma imensa.

Do que eu gosto muito

De goiabas. Do cheiro da minha mãe e da roupa lavada por ela. De gatos. De acácias. Da água do mar, e da canção das ondas. De abraços apertados. De relógios. De igrejas. Do campo. Das quatro estações do ano. De andar de comboio. De livros. De arroz de tamboril, de peixe grelhado. De nada para fazer. De sestas com a Maria. Do riso dela. Dos beijos do Luís. De mãos bonitas e unhas cuidadas. De fotografias.  Da ternura e da bondade. De gente simples. De roupa confortável. De carteiras. De massagens. De gente feliz. De sentido de humor. De manhãs cheias de Sol. De andar descalça. De histórias de vida. Do tom sawyer e da bluey. De velas acesas. Do cheiro a canela. De café. Do silêncio. Da pele hidratada. De queijo e de vinho. Do canto dos pássaros quando amanhece. De fado e de guitarra. Da generosidade. De pão quente. De lençois brancos na cama. Do cheiro da terra quando chove.

(...)

Do que eu não gosto

De três semanas seguidas de céu cinzento. De guarda-chuvas. De tatuagens. De piercings. De unhas de gel. De gente sempre zangada. Do pessimismo alheio. De quem não diz bom dia. De meias de leite mornas. Do meu cabelo. Das áreas comuns do prédio onde vivo. Do racismo. Da falta de educação. De cozinhar. De casas sem janelas. De carros, e ainda menos de autocarros. De vizinhas alcoviteiras. Das birras da Maria. Do cheiro a cigarro. Da falta de sensibilidade. Da minha pouca tolerância ao calor. De papaia. De nail art. Do novo. De alturas.

(...)

Sonhei com um grande amigo que já partiu deste mundo. Alguém de quem tenho saudades. E que sei que não me visitou em sonho por acaso. Numa só noite, muito apressado e sem falar, levou-me a Fátima e a Santiago de Compostela, os dois primeiros lugares que a Maria visitou quando nasceu. Ainda não sei exactamente qual, mas sei que este sonho tem um significado mais profundo. O que por aí vem.

Romance a três



Tem sido assim a nossa vida, e no dia dos namorados não foi excepção. Creio que são fases da vida. Cá em casa o jantar foi à luz de uma vela bem tagarela, a nossa becas larecas. Ela ainda é tão pequenina que no way em planear um Valentine´s day sem ela. Aliás, ainda vivemos embasbacados pela miúda, é assim uma espécie de troféu deste amor gigante que nos une. E confesso que jantarmos juntos, em casa, é bem mais confortável e divertido com ela. Disse-nos que não queria ficar com os avós e não lhe resistimos; era o que queríamos também.
E estamos a ficar velhos e sem pachorra para algumas coisas, como restaurantes cheios de casais enjoativos e quecas dadas em dias e horas marcadas. Aliás numa noite de sexta-feira, com as vidinhas estafantes que andamos a levar, queremos é paz e sossego. Assim simples. Acho que grandes encenações à volta do dia me fazem só rir, já não tenho mesmo paciência. Eu e ela ganhamos tulipas vermelhas e bombons, beijos e abraços. E foi quase um dia igual a todos os outros. Prefiro o Amor assim, calmo e compassivo, porque as nossas vidas estão demasiado difíceis para ser de outra forma.

Vai miúda

 


Vai sem medo. Hás-de poder dormir sobre estes dias de exaustão. Se for preciso, enquanto fazes as sopas, ficas quieta também.
Um dia destes acordas numa manhã cheia de Sol, dessas tão poderosas que nos abrem as janelas da alma de par em par, que nos caiam de luz as paredes do coração.
(...)

Lembrete para dias difíceis

Vai com força. Vai com Fé. Contra pessoas que nos oprimem, contra muros altos, contra falta de ar e contra falta de amor, há um céu imenso e pássaros que vão e voltam. Leves, livres, na matemática exacta das estações que derrotamos por não acreditar.

Cada vez me custa mais

Dominar o cansaço que alguns dias, algumas vezes, se apodera de mim. É uma coisa tão forte, tão fim de linha, que se eu não durmo, eu morro. E que me assusta. Porque é preciso manter a garra para assumir os compromissos que por aí vêm. Esta manhã a miuda chorou por causa de um episódio da Bluey, em que a familia ia ficar sem a casa. Foi a segunda vez que a apanhei em prantos ao ver o mesmo episódio. Eu e o Luís temos vivido mais ou menos só para ela, para o futuro dela, para espremer a laranja para que ela possa beber o melhor sumo possível. E para isso levanto-me muitas vezes às 5h da madrugada e outras tantas vezes chego a casa depois da 1h da madrugada. É muito pouco. Ando nervosa, exausta, com o vermelho sempre a piscar, e ela é muito pequenina para ter que lidar com pais intolerantes porque a vida está mesmo complicada. Tenho-me sentido uma má mãe e uma péssima namorada. Ando a embrulhar isto e sei que é sozinha que tenho que dar a volta.

Custa-me a mentira. A mentira fácil, essa mentirinha burra e fútil, só para escapar de nada. De descobrir que pessoas mentirosas também são mães e pais, louros e de olhos azuis, frequentadores de igreja e respeitados no bairro. E que somos obrigados a conviver e a sorrir-lhes. Ando sem pachorra para estas merdices da vida.

Custa-me perceber a falta de calma na minha filha. A minha tremenda ousadia em querer que ela floresça aquilo que nós pais não estamos a semear. A Maria teve uma avaliação excelente no Colégio. Mas em casa temos uma Maria muito teimosa, birrenta. Ás vezes penso que ela é um espelho nosso, e nem conseguimos perceber e ter calma também.

Custa-me cruzar com pais e filhos a cartar pertences encaixotados à pressa, pelas escadas deste prédio velho. As famílias são violadas a torto e a direito mas já é lugar tão comum que já nem espanta ninguém. Tivemos a sorte de ter um senhorio Senhor. Mas o mundo não somos só nós, e esta semana enquanto lhes segurava a porta da rua, entristeceu-me profundamente o olhar do menino com uma caixa de cds na mão, a ser assim expulso do sossego da infância. Depois a realidade alem fronteiras, que ainda consegue ser pior. Um pai de 30 anos, de Angola, a pedir por favor ajuda. Com 2 filhos pequenos só quer uma oportunidade para trabalhar noutro sitio e melhorar a vida dos filhos. "Eu faço qualquer coisa, trabalho no que for preciso." Mas não, não há uma mão estendida. Quem se atreve. Temos umas vidinhas tão de merda, e tanto medo de ameaçar o pouco que temos, que já nem conseguimos estender a mão aos outros. Eu não consigo e tenho esse pecado grande para um dia conversar com Deus.

No outro dia desci à baixa da cidade e fiquei assustada. A cidade deixou de ser bonita e ficou só perigosa. O mundo cresceu como uma criança obesa, a turistificação rebentou-nos pelas costuras. De repente eu voltei para quê? Quis tanto uma coisa que se calhar não existe mais. Ou sou eu que agora passeio pouco pela cidade e por isso desencantei. Queria apenas um canto sossegado. Queria poder dormir, sentir a brisa, caminhar descalça, deixar as janelas abertas. Queria ter tempo, queria gostar, sentir alegria e vitalidade. Queria apreciar os gatos, tirar fotografias aos portões antigos que já não há na cidade.

Mato-me a trabalhar, como a maioria das pessoas. Ás vezes punha o pé fora da linha cinzenta, e eram as gargalhadas dos patamares que me faziam ganhar fôlego para o caminho. Até que alguém me fez sentir que sou irresponsável e insana e idiota. Que giro mal os dinheiros e as emoções. Agora sei que a vida é um colete de forças. É preciso ir e fazer. Sem romanticismos. Mas dizer-vos que não gosto de mim assim. Que ando à toa à procura de um equilíbrio no meio desta minha nova realidade.

Custam-me os outros. Presentes demais. Ausentes demais. Pessoas estéreis de afectos, inebriadas de egoísmo. Às vezes apetece-me sossegar de todos, e não sei se isso não é vontade de morrer. Queira Deus que não.

Sinto em mim que nós gastamo-nos. Que se não tivermos cuidado o olhar fica baço por dentro. Deixei de gostar de comer, todos os instintos são apenas bulímicos e ando sempre afrontada e indisposta.  Nenhuma mulher sempre triste e cansada é bonita. Percebem?

Custa-me ter razão e não ma darem, custa-me desistir. Ir com a corrente sabem? É coisa de fracos e eu ando uma fraquinha dos diabos.

Falta tanto caminho. E eu sem forças para sair da névoa. Caos por dentro e caos por fora. 

Estarei doente?

Preciso urgentemente de uma Primavera para me salvar. Por sorte ela já dá sinais. Gosto de ficar à janela, mesmo com chuva, a ver os bichos lá fora. Como se movem sossegados, sem apertos como nós. Tudo está certo quando saio de casa às 6h da manhã para trabalhar e oiço os pássaros cantar. 

Acho que nos próximos dias vou fazer como aconselha o poema: lavar, arrumar, tirar o pó, fazer a sopa. Deixar que a poeira baixe e dias melhores cheguem.