46

Meu aniversário.

Saí dos 45 a lidar com o fim da vida. A morte será sempre um mistério até o derradeiro e inevitável frente a frente, em que reis e plebeus serão todos meninos pequeninos e indefesos. Importa apenas a bagagem interior; e vamos sozinhos mesmo que em vida tenhamos sido acompanhados por uma multidão, tão sozinhos que assusta.

Entrei nos 46 com um telefonema cheio de amor e magia. A voz limpa e pura da minha filha: "Mamã parabéns!"

Cheguei a casa exausta, depois de um turno duro, e tinha os meus dois Amores à minha espera com flores. Acho que tenho o melhor na vida.

(...)

Lá fora o mundo está cada vez mais estranho. Li hoje declarações de um general das forças armadas de um país, a dizer que já começou a terceira guerra mundial. Assustador. Triste. E pensar que nos preocupávamos tanto com o Trump e foi precisamente o Biden a soprar o baralho de cartas em castelo. Já não há os bons e os maus no mundo, há uma camuflagem perigosa que nos induz cada vez mais em erro. E há o futuro das nossas crianças, e o medo - confesso - de não sermos suficientemente fortes para as sabermos e podermos proteger.

Achei um piadão à Aida. Furiosa com colegas que destilam veneno e existem para melgar os outros, deu um suspiro do fundo dos figados e de olhos a revirar e mãos estendidas no ar, disse num berro em tom de desabafo:
"Há pessoas neste mundo que deveriam ser investigadas pela NASA!"

Deviam mesmo. Ainda não encontrei forma de surfar estas ondas sem ficar exausta. De maneiras que estou farta - fartinha - do meu emprego. Outra vez. Às vezes fico profundamente triste. Vendemos a nossa Paz por dinheiro; aguentamos o que nos vai matando todos os dias um bocadinho. Somos uns necessitados, uns escravos do poucochinho. E o mundo está tão torto que não acredito muito em mudanças para melhor. É a qualidade do ser humano, que está como a do ar que respiramos, cada vez mais tóxico. Anda tudo aos trambolhões e a espetar a faca no outro. Mas depois é Natal e graças a Deus que temos um emprego. Olé.

Vontade de hibernar

Ás vezes, sozinha comigo mesma, tenho medo. Por causa de um fundo muito fundo, triste e vazio, que visito sem perceber. Quando dou por ela já sinto o frio na alma. Acompanhado de um cansaço enorme, que me obriga a arrastar pelos dias e a sobreviver às escondidas.

Nesta altura do ano, custa mais um bocadinho. Meu aniversário, Natal, viragem do ano. Fico sem forças para disfarçar a tempo inteiro a minha falta de fôlego para tantos sorrisos.

Não me apetece nada, não me apetece ninguém, de todas as tantas coisas que um dia quis muito e que sonhei tanto. É só viver os dias todos uns atrás dos outros, iguaizinhos, a rezar muito para que nada falhe.

(...)

Bom dia Vida

Sobre a Vida



Sobre os milagres, sobre a sorte, sobre Deus, sobre a falta de ar e a falta de chão, sobre nada ser nosso, sobre rirmos e chorarmos na mesma hora, sobre o que e quem de verdade importa, sobre aquelas pessoas nossas que sem saberem nos procuram naquela hora de aflição, sobre o Amor, sobre a falta de sono, sobre gastar a bateria até ao fim, sobre precisarmos sempre uns dos outros, sobre a excelência e a Humanização exponenciada ao máximo no nosso Serviço Nacional de Saúde, sobre tempo sozinha com a minha filha, sobre sentir o cheiro e o calor dela em modo slow, sobre a alegria de dois girassóis.

A Maria esteve internada três dias. Meningite. Custou-me horrores que ela fizesse uma punção lombar. Tão pequenina: agulhas nos braços, nas mãos, nas costas, que me doíam horrivelmente no coração.

Foram momentos difíceis mas passou. Nem sei explicar mas hoje quando tivemos alta, senti que saí do Hospital uma pessoa diferente. Ás vezes o pavor, as lágrimas, despertam-nos para a vida. Tive todas as pessoas ao meu lado, as com quem contava e as com quem nem contava. E a Maria portou-se lindamente; temos uma menina brava a sério.


O grande desafio tem sido olhar para os sinais. Olhar para fora. Num mundo que nos diz que o eu é a prioridade, que nos ensina todos os dias a arte das pequenas guerras inúteis, dos desassossegos múltiplos dos quais somos reféns.

O meu sonho em relação a mim mesma é aprender a arte do silêncio.  Muito difícil. Ficar cada vez mais quieta em relação às tormentas. Deixar que a fúria alheia passe, como o vento, que há-de sempre ir dar a outros lugares.

A minha prioridade é a maternidade. Que me trouxe um olhar mais atento ao belo, à alegria, à magia das coisas quietas realmente importantes.

Hei-de sempre ser salva por uma erva que cresce na beira dos caminhos, por gatos-bebé a brincar em telhados de zinco numa tardinha cheia de sol, por um pássaro distraído a brincar em poças de água.

Nada é tão importante. Nem sequer nós o somos.

Contrastes




Novembro no mundo.

Assusta muito

O preço a pagar por estes dias extraordinários de um Outono generoso, com dias de céu azul e um sol que aquece a alma. Dias que lembram mais do que a Primavera, lembram o próprio Verão. Dias impróprios, ainda que o possamos justificar em Novembro, com o Verão de S. Martinho.

Há qualquer coisa que já não é igual quando desfrutamos de dias assim. O planeta está a declinar muito rápido. Penso na Maria, e na loucura das estações. Na nossa fragilidade e imbecilidade. Neste caminho sem retorno.