Achei um piadão à Aida. Furiosa com colegas que destilam veneno e existem para melgar os outros, deu um suspiro do fundo dos figados e de olhos a revirar e mãos estendidas no ar, disse num berro em tom de desabafo:
"Há pessoas neste mundo que deveriam ser investigadas pela NASA!"

Deviam mesmo. Ainda não encontrei forma de surfar estas ondas sem ficar exausta. De maneiras que estou farta - fartinha - do meu emprego. Outra vez. Às vezes fico profundamente triste. Vendemos a nossa Paz por dinheiro; aguentamos o que nos vai matando todos os dias um bocadinho. Somos uns necessitados, uns escravos do poucochinho. E o mundo está tão torto que não acredito muito em mudanças para melhor. É a qualidade do ser humano, que está como a do ar que respiramos, cada vez mais tóxico. Anda tudo aos trambolhões e a espetar a faca no outro. Mas depois é Natal e graças a Deus que temos um emprego. Olé.

Vontade de hibernar

Ás vezes, sozinha comigo mesma, tenho medo. Por causa de um fundo muito fundo, triste e vazio, que visito sem perceber. Quando dou por ela já sinto o frio na alma. Acompanhado de um cansaço enorme, que me obriga a arrastar pelos dias e a sobreviver às escondidas.

Nesta altura do ano, custa mais um bocadinho. Meu aniversário, Natal, viragem do ano. Fico sem forças para disfarçar a tempo inteiro a minha falta de fôlego para tantos sorrisos.

Não me apetece nada, não me apetece ninguém, de todas as tantas coisas que um dia quis muito e que sonhei tanto. É só viver os dias todos uns atrás dos outros, iguaizinhos, a rezar muito para que nada falhe.

(...)

Bom dia Vida

Sobre a Vida



Sobre os milagres, sobre a sorte, sobre Deus, sobre a falta de ar e a falta de chão, sobre nada ser nosso, sobre rirmos e chorarmos na mesma hora, sobre o que e quem de verdade importa, sobre aquelas pessoas nossas que sem saberem nos procuram naquela hora de aflição, sobre o Amor, sobre a falta de sono, sobre gastar a bateria até ao fim, sobre precisarmos sempre uns dos outros, sobre a excelência e a Humanização exponenciada ao máximo no nosso Serviço Nacional de Saúde, sobre tempo sozinha com a minha filha, sobre sentir o cheiro e o calor dela em modo slow, sobre a alegria de dois girassóis.

A Maria esteve internada três dias. Meningite. Custou-me horrores que ela fizesse uma punção lombar. Tão pequenina: agulhas nos braços, nas mãos, nas costas, que me doíam horrivelmente no coração.

Foram momentos difíceis mas passou. Nem sei explicar mas hoje quando tivemos alta, senti que saí do Hospital uma pessoa diferente. Ás vezes o pavor, as lágrimas, despertam-nos para a vida. Tive todas as pessoas ao meu lado, as com quem contava e as com quem nem contava. E a Maria portou-se lindamente; temos uma menina brava a sério.


O grande desafio tem sido olhar para os sinais. Olhar para fora. Num mundo que nos diz que o eu é a prioridade, que nos ensina todos os dias a arte das pequenas guerras inúteis, dos desassossegos múltiplos dos quais somos reféns.

O meu sonho em relação a mim mesma é aprender a arte do silêncio.  Muito difícil. Ficar cada vez mais quieta em relação às tormentas. Deixar que a fúria alheia passe, como o vento, que há-de sempre ir dar a outros lugares.

A minha prioridade é a maternidade. Que me trouxe um olhar mais atento ao belo, à alegria, à magia das coisas quietas realmente importantes.

Hei-de sempre ser salva por uma erva que cresce na beira dos caminhos, por gatos-bebé a brincar em telhados de zinco numa tardinha cheia de sol, por um pássaro distraído a brincar em poças de água.

Nada é tão importante. Nem sequer nós o somos.

Contrastes




Novembro no mundo.

Assusta muito

O preço a pagar por estes dias extraordinários de um Outono generoso, com dias de céu azul e um sol que aquece a alma. Dias que lembram mais do que a Primavera, lembram o próprio Verão. Dias impróprios, ainda que o possamos justificar em Novembro, com o Verão de S. Martinho.

Há qualquer coisa que já não é igual quando desfrutamos de dias assim. O planeta está a declinar muito rápido. Penso na Maria, e na loucura das estações. Na nossa fragilidade e imbecilidade. Neste caminho sem retorno.

Vontade de voltar para a ilha








Lá faltava-me tudo aqui. O rio, o nevoeiro das manhãs, a cultura, o verde, o povo, a cidade velhinha e cheia de história. Mas os anos passam, e as saudades invertem-se. Tenho saudades do vento, das montanhas nuas, da exuberância exótica das flores, da lava negra, do silêncio, da paz, da liberdade e dos dias que parecem maiores todo o ano, das caminhadas, das acácias.

Nunca temos tudo.

Uma Família

 


É a maior herança. Ter com quem rir, com quem trincar os dias amargos, com quem partilhar os silêncios. Ter para quem voltar, no fim do dia ou no fim de uma viagem longa. Ter com quem apreciar as coisas simples como ficar sentado na beira do rio numa tarde de calor.

Ser de alguém; pertencer a.

Querida filha

Corre o mês de Outubro do ano 2024.

A mãe e o pai fazem contas à vida, o dinheiro não chega para casarmos e qualquer dia seremos expulsos da cidade, sendo que as casas no Porto quer seja para alugar ou comprar estão a preços proibidos.

O meu trabalho começa a fazer-me um cheque-mate mental. O teu pai não fala muito sobre as coisas dele mas sei que também não está fácil, vivemos num país de salários muito baixos e onde cada um tem que trabalhar por dois.

Morreu o cantor Marco Paulo, um dia falo-te nele.

Em Lisboa queimam carros nas ruas. Uma anarquia este país, uma desordem tal que cheira só a mau prenúncio.

A tua avó Betinha descobriu o Facebook.

Tens 4 anos e a tua avó Rosa e o teu avô José deram-te um chiclete. 

Decidi que não vou tomar a vacina nem da gripe nem do COVID.

Sinto-me muito cansada filha, tenho abandonado algumas pessoas no caminho, e vou abandonar mais. Sinto que não tenho capacidade nem braços para tudo, para tantos, para todos. Antes sentia-me culpada, agora já não. A consciência da minha finitude obriga-me a perceber que vou fazer o possível e está tudo bem. Concentro-me em ti e mesmo assim falho. Penso demasiado nas coisas, e devo dizer-te que não serve de muito. Às vezes ando triste, às vezes só me apetece viver. 

És tu a canção dos meus dias. A minha história de amor; o meu berço, o meu colo, a minha casa no mundo.

(...)