Do melhor

A ultrapassar

Há muito tempo que lido mal com a falta de amor. Com a falta dos outros. Com a angustia que me causa não se importarem. Com o perceber que se eu não mexer as minhas palhas, ninguém mexerá. Com nunca me sentir aprovada em nada, a sinalizar bem todas as frequentes vezes em que alguém verbaliza reprovações em relação à minha forma de ser e de estar na vida. É como se tivesse um vermelho que pisca e dispara sinal sonoro cada vez que alguma coisa me diminui. E porque não poderia ser de outra forma, só tem poder de o fazer quem permitimos ficar perto, ou ficar junto. Para cumulo sou uma sensível até à medula, sou a que vê um avião passar ao longe e chora, o que torna qualquer incompatibilidade na Torre. Quando era miúda achava que um dia ia conhecer alguém que gostasse apaixonadamente da minha forma de ser, dessa terrível sensibilidade que vista de algum outro prisma poderia ser uma qualidade. Hoje sei que não é assim.

Tenho tentado repetir baixinho cá dentro que isto não é sobre os outros, isto é sobre mim. Os outros são e dão o que podem e o que querem, são natureza alheia. Culpar os outros, esperar dos outros, atrasa e estanca o crescimento que a minha alma pretende desta passagem. Devo conseguir manter-me eu, apesar dos outros.

Ficar bem porque sou casada comigo mesma. Porque conheci poucos psicólogos com vocação como sei que tenho. Porque seja qual for o emprego sei que me dedico totalmente. Porque sou escrupulosa na organização do dia a dia da minha filha. Porque não corro atrás das oportunidades, mas fui educada a não faltar ao trabalho por causa de uma gripe. Porque sou simples e gosto cada vez mais de ser assim. Porque tenho Fé, apesar de quase todos os dias fazer a derradeira pergunta de Cristo quando no desespero se sentiu abandonado. Porque sou pobre mas não sou miserável. Porque não sou alegre, mas não sou infeliz. 

Um dia tudo perde a importância.

Algo que me desassossega


As tempestades com nome de gente, umas atrás das outras, a arrancar as árvores seculares pela raiz, a deixar toda uma cidade num estado caótico de por os nervos em franja. Chuvas torrenciais em hora de ponta, eu com a miúda mais a mochila mais o saco do ballet mais a minha carteira mais o guarda-chuva que em dias assim é só mais um empecilho, mais setecentos kilos de fúria da pior. Não haver um bus, um táxi. O pai dela sem atender o telefone até duas horas depois do fim do turno dele. Contas feitas foi um dos piores dias da minha vida. Durante a noite não preguei olho, pensava em como se mesmo dentro de casa se sente tamanha angustia, imaginemos então quem vive nas ruas. A tristeza de perceber a nossa imensa fragilidade. De sentir a porra da cidade sem estrutura nenhuma para dias assim. Ter que lidar com gente mal educada - porque hoje em dia é o que mais há - ao mesmo tempo que também eu estou a ferver. Porque fica tudo louco: bichos, gente, aparelhos, transportes.
Em quase cinquenta anos de vida, de todos os temporais que vivi, este foi o mais marcante. Se isto avançar tão rápido como dizem, então deve ser mesmo o principio do fim dos dias há muito anunciado.

Isto de ser mãe

Trata-se de um profundo frente a frente comigo mesma. Nunca fui tão ao fundo dos meus próprios preconceitos, dos meus próprios medos. E tenho percebido nas últimas semanas, que se eu quero deixar uma boa pessoa no mundo, tenho que ter particular cuidado em não fazer julgamentos, baseados nos meus preconceitos e medos, na frente dela, da nossa pequena Maria. Porque cada vez que eu faço um comentário sobre o colégio, sobre a educadora, sobre a auxiliar, sobre o porteiro, sobre os amiguinhos, sobre a mãe dos amiguinhos, eu ensino a Maria a ser. Com 4 anos as crianças imitam os adultos. Se não formos construtivos e generosos, eles também não serão.

Educar a Maria tem sido reeducar-me.

Há coisas boas, infinitamente boas. Como por exemplo adormecer com a Maria. Como estes primeiros dias de chuva e névoa, se estamos quentinhos em casa. Como uma parvoíce qualquer que nos surpreende e nos faz rir até doer a barriga. Como uma canja de galinha com hortelã quando nos sentimos doentes. Como um dia em família, só feito de pasmaceira, de calma sossego e silêncio.

Estas têm sido as grandes coisas da minha vida, as simples, que me fazem sentir, que me fazem sentir melhor.

Às vezes é difícil perceber e aceitar que os Invernos nunca serão justos para os sem-abrigo, que tantas crianças nunca saberão o conforto de tanto amor quanto tem a Maria, que a vida real não é um conto de fadas.

Mas voltarmos para casa todos os dias, sãos e salvos, e reunirmos-nos os três nesta nossa bolha sagrada, é uma sorte maior do que grande. Devo não perder isso de vista, especialmente nos dias em que travo batalhas mais profundas com a minha tristeza. Ser mais justa e ser mais grata.

Do nosso mundo

Uma enorme maçã podre nos seus últimos dias:
Mais um barco de migrantes com destino directo à morte, desta vez ao largo de França. Uma criança da idade da minha filha - 4 anos - naquele barco. Dizem as notícias que morreu espezinhada.
(...)

O paradoxo da injustiça

Olhar para fotografias minhas e perceber que fisicamente estou cada vez mais parecida com o meu pai. O senhor que nunca se preocupou, que é pai da mulher que se preocupa excessivamente por tudo e por nada.

A injustiça nos detalhes

Acho que não é novidade para ninguém que o mundo é uma ferida aberta. E que nós seres humanos nos habituamos ao sofrimento alheio com aterradora conformação. Mais uma pateira, a chegar a Hierro, que afundou. Com cinquenta pessoas, entre as quais várias crianças, primeiro enfrentaram o terror da viagem, depois com terra à vista moveram-se todos por ignorância e por alegria para o mesmo lugar do barco, que cedeu. Um mar cheio de corpos, peixes que já vão sendo carnívoros.

Aquela gente tinha esperança. Tinha objectivos. Alegria que move.

(...)

Acabou-se-me completamente a alegria de viver.

Doem-me os dias todos iguais, sem sabor. As sucessivas frustrações com empregos que parecem castigos - e serão. Memórias de um amor, que não chegou nem para casar. Dói-me o não fazer umas férias, numa casa velha aqui ao lado. O não fazer planos de futuro, rigorosamente nada. O não ter objectivos pequenos sequer. Resume-se tudo, há demasiado tempo, em ir trabalhar, aturar, voltar a casa, limpar, não conversar sequer, e começar tudo outro vez. Caí num vazio tão grande que não sei como sair daqui. Bem certo é que quem não é amado não consegue ser feliz. E eu nunca fui amada. Talvez agora seja pela Maria, mas é temporário. 

Gostava de carregar num botão. E desaparecer definitivamente da memória de todos.